14 Outubro 2022
Na última quarta-feira, 12, foram apresentados na Universidade Urbaniana de Roma os primeiros resultados do projeto de pesquisa promovido pela Seção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Desenvolvimento Humano, iniciado há um ano para ouvir o “sensus fidei” de quem vive nas periferias dos cinco continentes. Segundo o cardeal Czerny, a fé de quem vive à margem “tem muito a ensinar aos nossos pensamentos e à nossa missão”.
A reportagem é de Alessandro Di Bussolo, publicada em Vatican News, 12-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um projeto de pesquisa para promover uma renovação da teologia, de suas linguagens e de sua agenda, ligado ao ensino do Papa Francisco na Evangelii gaudium, Laudato si’ e Fratelli tutti. Um projeto de escuta do “sensus fidei” de quem vive à margem de nossas cidades, desejado pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, porque “é bom para a teologia – explicou o prefeito, cardeal Michael Czerny – às vezes deixar as cátedras e os livros para ir à escola das periferias”.
Esse é o projeto de pesquisa “Fazer teologia a partir das periferias existenciais”, promovido pela Seção Migrantes e Refugiados do dicastério, divulgado pela primeira vez nessa quarta-feira, 12, em um congresso na Universidade Urbaniana de Roma, após um ano de trabalho oculto com mais de 500 entrevistas individuais e em grupos de discussão em 40 cidades de todos os continentes.
Para apoiar o papa e os bispos em seu serviço ao desenvolvimento humano integral, “nós precisamos, principalmente, escutar”, enfatizou o cardeal Czerny, introduzindo os trabalhos do congresso “Escutar e discernir”. E nisso “a teologia tem um lugar fundamental”, mas “não pode ser feita apenas na universidade, porque o lugar da teologia é a missão”. E não há teologia “sem problemas, sem crise, sem o grito de quem pede água, pão, paz, justiça, libertação”.
Essa experiência do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral “para a teologia representa talvez uma sacudida, para se repensar mais em relação às outras disciplinas e sobretudo aos desafios que nos pedem sinodalidade. Sobre esses desafios, o sensus fidei de quem é periférico tem muito a instruir os nossos pensamentos e a nossa missão”. Nenhum dos teólogos que foram às periferias para escutar, concluiu, “se arrependeu”.
Díptico do fotógrafo Giovanni Chiaramonte, usado como pôster do congresso
Foto: Vatican News
O cardeal Luis Antonio Tagle, pró-prefeito do Dicastério para a Evangelização, e a Ir. Natalie Becquart, subsecretária da Secretaria do Sínodo dos Bispos, também definiram o marco e o pano de fundo da pesquisa. O cardeal filipino falou dos “pobres como nossos evangelizadores”, mesmo que em nossas sociedades eles sejam considerados uma minoria, porque são grandes ouvintes da Boa Nova, eles que ouviram muitas más notícias na vida.
“Os ricos – lembrou Tagle – falam da Boa Nova, enquanto os pobres a assumem, se alimentam dela e a digerem. E, portanto, também são testemunhas dela.” Portanto, “os pobres não são apenas os primeiros destinatários da Boa Nova, mas também seus primeiros portadores”. Devemos aprender com o seu “poder oculto: o Evangelho neles que os salva do desespero e lhes permite compartilhar todo o pouco que têm”.
A Ir. Becquart, falando sobre o tema “Caminhar juntos: uma Igreja que renasce nas margens”, recordou que o Sínodo que a Igreja está vivendo “será o evento eclesial mais importante depois do Concílio Vaticano II, porque, pela primeira vez em dois mil anos, todo o povo de Deus é ouvido”.
Desde o início do caminho sinodal, explicou Becquart, “temos insistido na escuta das margens”. O esforço deve ser o de uma conversão sinodal da Igreja, mediante a escuta do sensus fidei dos fiéis. Ela citou o exemplo de uma diocese nos Estados Unidos que acolhe muitos migrantes: “O bispo me disse que este Sínodo está mudando o modo como ele vê a evangelização”.
O Sínodo pode ser uma “caixa de ressonância para aqueles que não têm voz, como ocorreu com os Sínodos sobre os Jovens e sobre a Amazônia” e, assim, se tornar um “percurso de valorização dos pobres”.
A partir da escuta das contribuições das Igrejas locais para o Sínodo, a Ir. Becquart ressalta que, nas Filipinas, “os pobres não sentem os padres próximos, porque estes pensam e estão sobretudo com os ricos”. E, na Austrália, os fiéis indígenas não se sentem acolhidos na Igreja.
Por isso, “o Sínodo deve se tornar um caminho de reconhecimento para quem não se reconhece na Igreja e de inclusão. Somos chamados a uma teologia sinodal, capaz de escutar o sensus fidei dos fiéis. Uma teologia coletiva, do diálogo e da transdisciplinaridade, em aprendizagem”. Como a do teólogo jesuíta francês Etienne Grieu, que criou um grupo de teólogos à escuta dos pobres “e assim assumiu o risco de escutar os sofredores”.
Depois, foi o diretor do projeto, Pe. Sergio Massironi, quem explicou os temas e os métodos, e sua “mudança de perspectiva no sinal do Concílio”. Um projeto de pesquisa para a renovação da teologia, que “parece ainda não ter registrado a mudança de época em curso”, como a “fragmentação e radicalização das identidades, inclusive religiosas”, o crescimento da “pobreza, desigualdades, desconfianças e conflitos”. Tanto que, no que diz respeito à primavera do Concílio e às suas esperanças, “mudou a relação com o futuro”.
Na base da pesquisa, esclareceu o Pe. Massironi, está a convicção, muito cara ao Papa Francisco, “enraizada não só na teologia latino-americana, mas também nas Sagradas Escrituras e na Tradição, de que aquelas pessoas que a vida pôs nas margens, dos modos mais diversos, são portadores de uma sabedoria capaz de reabrir ambientes asfixiados e discursos fechados”.
Um projeto que viu muitos teólogos de todos os continentes “deixarem suas cátedras e irem escutar”, rumo a uma “cátedra dos pobres”, semelhante à Cátedra dos Não Crentes promovida em Milão pelo cardeal Carlo Maria Martini.
“Ir às periferias existenciais – esclareceu ainda o diretor da pesquisa – significou se perguntar onde estão e quem são aqueles que a Igreja tende a não ver e a não estimar como portadores de uma palavra de Deus. Os não poderosos, os não vistos, na cátedra, para evangelizar o não visto, o periférico, o não reconhecido que está em nós.”
Concretamente, o projeto previu seis coordenadores para as diferentes áreas do mundo, que definiram 10 temas comuns, derivados da análise dos estudos sobre os três documentos do Papa Francisco. Trata-se de:
1) sabedoria das margens,
2) vulnerabilidade e ternura,
3) consciência ecológica,
4) a perspectiva das mulheres,
5) revelação e alegria,
6) cristãos na esfera pública: novos paradigmas,
7) esperança e confiança,
8) sair do clericalismo,
9) hospedar o desconhecido,
10) diálogo e encontro.
Sobre cada um desses temas, será publicado em breve no site da Seção Migrantes e Refugiados do dicastério, que já hospeda muitos materiais da pesquisa, um vídeo e um subsídio com a voz viva das pessoas ouvidas.
Sobre o projeto, entrevistamos o Pe. Sergio Massironi:
Para que a teologia registre a mudança dos nossos tempos, havia a necessidade dessa “cátedra dos pobres”, como você a definiu?
Acredito que o Papa Francisco nos provocou muito nesse sentido, e levar a sério o seu magistério e as suas palavras nos levou a fazer a experiência de como é revolucionário, também para um teólogo e, acredito, para todo cristão, o contato direto com pessoas. Talvez seja fácil pensar que elas precisam de ajuda, mas, na realidade são sujeitos, têm uma palavra própria, têm uma experiência própria, a teologia diria um “sensus fidei”, um faro também em relação às coisas de Deus, o que para nós é um choque, uma revelação e, portanto, nos permite repensar a nós mesmos, repensar tudo.
Pode nos apresentar em síntese os estímulos dos 10 temas de pesquisa que vocês escolheram?
São temas de pesquisa que vêm do próprio magistério Papa Francisco, da Evangelii gaudium à Laudato si’ e à Fratelli tutti. A partir da própria ideia de uma sabedoria das margens, isso se tornou tema, passando pela vulnerabilidade e pela experiência do fracasso, até chegar então à questão da consciência ecológica, a cultura do encontro, o diálogo, a superação do clericalismo, a perspectiva das mulheres. Grandes temas da vida de todos os dias que reconhecemos como temas da teologia, porque justamente a revelação de Deus está na carne humana, na história de cada um. Portanto, esses temas que parecem tão horizontais, tão pertencentes à terra, são lugares onde Deus nos espera.
Quais pérolas, quais citações da escuta das periferias mais lhe chamaram a atenção?
Há muitas delas, porque escutamos com calma, longamente, 508 pessoas, e consequentemente cada uma trouxe suas pérolas. Lembro-me em particular como um sem-teto, por exemplo, descreveu sua experiência litúrgica, quando entrou em uma igreja, e disse: “Parece que até as paredes cantam, e a Palavra de Deus, embora talvez de vez em quando você não consiga segui-la ou entendê-la completamente, trabalha sozinha dentro de você”. Ou como um detento se sentiu visitado pelo próprio Jesus, que lhe disse: “Vem, encosta a tua cabeça no meu ombro e descansa de tanto pecar”. Essa ideia de Jesus como um lugar de repouso e um ponto forte de recomeço para quem errou profundamente. Mas há realmente muitas experiências que provavelmente cada um de nós também poderia trazer, simplesmente tendo a coragem e às vezes a falta daqueles filtros que nós mesmos assumimos nas relações de cada dia e que os pobres não têm e, assim, podem levar a Palavra de Deus de uma maneira muito incandescente para todos nós.
Em conclusão, que teologia pedem os pobres?
Acredito que o momento principal para nós foi perceber que os pobres têm uma teologia, porque, como o cardeal Tagle disse hoje, “Jesus é o primeiro dos pobres”, é a Palavra de Deus. E, portanto, colocarmo-nos na escola deles significa entender Deus e entender a realidade a partir daquilo que a fadiga de todos os dias os leva a compreender a partir de dentro, em todas as esferas da vida, da afetiva à laboral, até a mais espiritual.
Por fim, o Mons. Armando Matteo, secretário da Seção Doutrinal do Dicastério para a Doutrina da Fé, que está colaborando com o projeto de pesquisa, propôs uma primeira releitura dos dados coletados, perguntando-se “De que teologia precisamos?”.
Em um contexto de crise da teologia, o Papa Francisco, na Evangelii gaudium, adverte que não serve “uma teologia de gabinete” [n. 133], distante das histórias das pessoas alcançadas pelo projeto de pesquisa e das suas experiências, muitas vezes conturbadas e sofridas.
Em vez disso, precisamos de uma teologia “que se responsabilize pela autorreferencialidade da Igreja”. As entrevistas recolhidas, para Mons. Matteo, sugerem três “horizontes de pensamento”.
Primeiro, “aceitar que hoje a Igreja não está mais no centro dos imaginários compartilhados e decisivos para o destino da humanidade. Aceitar a periferia”. Se aceitarmos essa verdade, “superamos todas as ilusões de força e de poder”. Porque nós não somos o nosso poder, mas “é o Jesus do Evangelho e o Evangelho de Jesus”.
Em segundo lugar, os entrevistados clamam “a urgência de uma Igreja diferente, em saída, não autorreferencial, de uma Igreja que saiba ser profecia e sinal de uma narrativa do humano subtraída do domínio espiritual do dinheiro. Há ainda necessidade do cristianismo, mas é preciso um cristianismo diferente”, que combata a “comercialização da existência do ser humano”.
Terceiro, por fim, “a esperança e a confiança que as pessoas das periferias têm no impulso que o Papa Francisco está tentando dar à sua Igreja. Elas compartilham com ele o sonho de que o cristianismo possa realmente dar origem a uma ‘nova imaginação do possível’, sobretudo na lógica daquela cultura e gestualidade samaritanas com a qual elas muitas vezes testemunham ter sido beneficiadas”.
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Por uma teologia à escuta das periferias existenciais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU